16 junho 2010

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A geléia viva

Este sonho foi de uma assombração triste. Havia uma geléia que estava viva. Quais eram os sentimentos da geléia? o silêncio. Viva e silenciosa, a geléia arrastava-se com dificuldade pela mesa, descendo, subindo, vagarosa, sem se derramar. Quem pegava nela? Ninguém tinha coragem. Quando olhei-a, nela vi espelhado meu próprio rosto mexendo-se lento na sua vida. Minha deformação essencial. Deformada sem me derramar. Também eu apenas viva. Lançada no horror, quis fugir da geléia, fui ao terraço, pronta a me lançar daquele último andar da Rua Marquês de Abrantes. Era noite fechada, e isso eu via do terraço, e eu estava tão perdida de medo que o fim se aproximava, tudo o que é forte demais parece estar perto de um fim. Mas antes de saltar, eu resolvia pintar os lábios. Pareceu-me que o batom estava curiosamente mole. Percebi então: o batom era também de geléia viva. E ali estava eu no terraço escuro com a boca úmida da coisa viva. Quando já estava com as pernas para fora do balcão, e pronta para me deixar cair, foi que vi os olhos do escuro. Não “olhos no escuro”. Mas os olhos do escuro. O escuro me espiava com dois olhos grandes, separados. A escuridão, pois, também era viva. Aonde encontraria eu a morte? A morte era geléia viva. Vivo estava tudo. Tudo é vivo, primário, lento, interessado, tudo é primariamente imortal.
Com uma dificuldade quase insuperável, consegui acordar-me a mim mesma, como se eu me puxasse pelos cabelos pra sair do atolado vivo. Abri os olhos. O quarto estava escuro, mas era um escuro reconhecível, não o profundo escuro do qual eu me arrancara. Sinto-me mais tranqüila. Tudo fora um sonho. Mas percebi que um dos meus braços estava para fora do lençol. Com um sobressalto, recolhi-o: nada meu deveria estar exposto, se é que eu ainda queria me salvar. Eu ainda queria me salvar? Acho que sim: pois acendi a luz. E vi o quarto de contornos firmes. Havíamos endurecido a geléia viva em paredes, havíamos endurecido a geléia viva em teto; havíamos matado tudo o que se podia matar, tentado restaurar a paz da morte em torno de nós, fugindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a geléia viva. Fechei a luz. De repente um galo cantou. Num edifício de apartamentos, um galo? Um galo rouco. No edifício caiado de branco, um galo vivo. Por fora a casa limpa, e por dentro o grito? assim falava o Livro. Por fora a morte conseguida, limpa, definitiva – mas por dentro a geléia viva. Disso eu soube, no primário da noite.


Clarice Lispector

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